Blog do Hayton

e outros casos” (2021) e "Frestas" v(2022).

Fósseis do presente

01/10/2025 10h10
Fósseis do presente

Fiquei pensativo, outro dia, com a notícia de que fotos, moedas e um exemplar amarelado de A Tribuna de Santos foram encontrados dentro de uma cápsula do tempo, enterrada em 1921 no quartel de Quitaúna, em Osasco. Um presente do passado para o futuro, lacrado diante de presidentes, marechais e engenheiros militares. Cento e quatro anos depois, um capitão de 33 anos abriu a caixa e encontrou, além do cheiro de mofo, a sensação de folhear a alma de um país que ainda engatinhava no século XX.

Imagino o susto das autoridades de 1921 se pudessem bisbilhotar 2025: caixas de supermercado sem humanos, carros que andam sozinhos, gente pedindo comida com um clique no celular e, mesmo assim, brigando nas redes sociais para provar quem é mais patriota. Aposto que voltariam correndo para carruagens puxadas a cavalo, cuidando dos bolsos para não perder as moedas de réis.

A cápsula trazia jornais noticiando a Primeira Guerra, tumultos na Câmara, crises em Portugal e a visita de um ministro da Guerra a Santos. Um século depois, só mudaram nomes, bigodes e trajes: seguimos colecionando crises e guerras, com a pontualidade das queimadas no Cerrado.

Então me pego especulando: o que eu deixaria para ser encontrado daqui a 104 anos?

Talvez um pendrive — só para arrancar gargalhadas de quem, em 2129, já terá hologramas na retina. Ou uma carteira de couro, para que arqueólogos do futuro se perguntem por que precisávamos de plástico com chip para pagar o cafezinho. Ou um controle remoto, esse fóssil de sofá, lembrança de um tempo em que a humanidade travava batalhas épicas contra almofadas em busca de outro pedaço de plástico com pilhas.

Quem sabe uma barra de chocolate? Mas aí seria crueldade: se os especialistas de hoje estiverem certos, em 2030 já teremos entrado na era da escassez de cacau. Imagino a cena: um tataraneto guloso abrindo o embrulho e se perguntando se aquele pó marrom era doce ou apenas mais uma pegadinha dos antepassados.

Enquanto um descendente lambe o papel vazio, outros herdarão o silêncio da caligrafia — essa que já foi arte de freiras com palmatórias e de contadores nos livros-caixa, hoje sobrevive em convites de casamento. As chaves metálicas, que tilintavam como sinos de liberdade, deram lugar a digitais e senhas. Senhas que também caminham para a extinção, substituídas por olhos e rostos escaneados.

E os shoppings? Esses santuários do consumo logo virarão policlínicas, escritórios de coworking e playgrounds para idosos. O caixa de fast-food, antes malabarista de bandeja e troco, já foi trocado por telas de toque que nunca oferecem o brinde de um sorriso.

Até a embreagem, madrasta dos motoristas iniciantes que fazia o carro se engasgar na ladeira, entrou em contagem regressiva. Veículos automáticos prometem enterrar de vez a marcha manual — e, com ela, a desculpa de que o carro “morreu” justamente na hora de levar a namorada para casa às dez da noite.

Talvez eu devesse enterrar também um caderno com recortes de discussões nas redes sociais: gente batendo boca como no recreio da escola, cada um convencido de que a bola de verdade é a sua. Material perfeito para que historiadores concluam que a Terceira Guerra Mundial não aconteceu por falta de munição, mas por excesso de verborragia e falta de respeito à opinião alheia.

Deixaria ainda um celular com 1234 aplicativos inúteis, para que em 2129 descubram que já fomos escravos de alarmes e notificações — e que até para beber água era preciso um deles nos avisar.

Ou uma máscara de pano, daquelas de 2020, prova de que já vivemos tempos em que um vírus obrigou bilhões a se esconder atrás de um pedaço de tecido — enquanto muitos juravam que o fim da farra estava próximo.

No fundo, qualquer cápsula do tempo é uma confissão: a de que somos frágeis, passageiros, mas teimosos em deixar marcas. Uma foto esmaecida, uma cédula de vinte reais, uma manchete sobre a perda, na mesma semana, do traço de Jaguar e da pena de Luis Fernando Verissimo — tudo serve para gritar ao futuro: “estivemos aqui!”.

E talvez seja isso o que mais inquieta. Não importa se deixaremos uma máscara ou uma barra de chocolate: o que atravessa séculos não é o objeto, mas a mania de querer ser lembrado. Mania tão humana quanto inútil — já que a vida, essa gozadora incorrigível, passa os séculos apagando, com prazer, as nossas pegadas.