CABEÇAS À VENDA
Semana passada, um português chamado João Paulo Silva Oliveira resolveu brincar de inquisidor digital. Armado não de espada, mas de um celular e de uma conta no TikTok, ofereceu 500 euros por cada cabeça de brasileiro em território luso — decepada no pescoço, como se fossem melancias maduras à beira da estrada. Na cotação do euro, cerca de 3.200 reais a unidade. O vídeo sumiu, a conta também, mas o cheiro azedo de racismo ficou impregnado no ar, como peixe esquecido no balcão de uma padaria.
A padaria, aliás, foi palco indireto. O homem trabalhava numa em Aveiro. Quando a história explodiu, o estabelecimento correu para lavar as mãos, postando no Instagram sua bula de boas intenções: diversidade, inclusão, respeito. Como se fosse preciso explicar que não se paga recompensa por cabeças humanas desde Lampião e Maria Bonita, decapitados em 1938 na Grota do Angico, no Sertão sergipano, e exibidos como troféus em cortejo por cidades nordestinas até serem levados para Salvador, na Bahia.
Mas não é de hoje que pedras provocam tropeços na relação entre os dois lados do Atlântico. Em 2019, na Faculdade de Direito de Lisboa, expuseram um caixote de pedras de calçada com cartaz: “Grátis se for para atirar a um zuca”. A subdiretora da instituição, guardiã da legalidade, justificou como “liberdade de opinião, autocrítica, humor e sátira”. Traduzindo: a pedra virou piada acadêmica, e o alvo que se dane.
Esses episódios parecem isolados, mas possuem raízes mais profundas. A história luso-brasileira sempre oscilou entre afagos e tapas. E quando não voam pedras, voam caricaturas. De um lado, o “portuga” do bigode grosso e do lápis na orelha, ridicularizado em nossas piadas como padeiro de raciocínio curto. Do outro, o “zuca” barulhento, malandro, usurpador de vagas, retratado em terras lusas como hóspede inconveniente que nunca vai embora. É como se as duas nações, presas a velhos ressentimentos, trocassem farpas para esquecer que são feitas do mesmo barro, crias da mesma costela, com a poeira de impérios falidos.
No fundo, herdamos um ao outro — junto com as piadas, a língua, o tempero da saudade e até a sífilis, como brincaram Chico Buarque e Ruy Guerra em “Fado Tropical”. Portugal foi o padrinho severo, que nos batizou à força e depois partiu para cuidar da própria sobrevivência na Europa. O Brasil, o filho imberbe que ainda acha que seria potência se tivesse nascido de pais ingleses, como os americanos. O resultado? Uma relação mal resolvida, que mistura ironia, sarcasmo e sopapos.
É claro que a maioria dos portugueses não pensa como João Paulo, o carrasco do TikTok com nome de santo papa. A maioria acolhe, divide empregos e mesas, vende sonhos embalados em bacalhau. Também é verdade que muitos brasileiros chegam a Portugal carregando a caricatura do padeiro analfabeto e se surpreendem ao encontrar um europeu culto, poliglota, muito além da imagem guardada. O choque cultural é mútuo: um espera encontrar o amigo da esquina, o outro enxerga o invasor da rua.
Racismo ou xenofobia não se resolve com estatísticas, mas vale lembrar: são mais de meio milhão de brasileiros vivendo em Portugal. Raízes que atravessaram o mar e florescem em outra terra. Histórias que poderiam formar uma ponte sólida, mas que às vezes se transformam em muros baixos, fáceis de escalar com pedras na mão.
O problema é que sempre haverá quem prefira a pedra ao abraço. Para esses, é bom lembrar: se fosse para medir o preço de uma cabeça, o mercado estaria em crise. Algumas não valem nem o valor do boné que carregam. Outras, raras, não têm preço, porque guardam sonhos e utopias.
Talvez o que falte mesmo seja revisitar o “Fado Tropical”, que reconhece no brasileiro um sentimental justamente por carregar no sangue o lirismo lusitano. Lirismo que anda escondido debaixo de camadas de ódio gratuito e memes virulentos. O ideal, como canta Chico Buarque, é que este país se torne um imenso Portugal — não no sentido de se apequenar, mas de assumir que somos parentes condenados a conviver, como toda família que se desentende no almoço de domingo, mas volta para a mesa de jantar quando alguém pede perdão.
E que cada um proteja bem a sua cabeça sobre o pescoço. Vale mais inteira do que precificada em euros. Até porque, se fosse para vender, não haveria padaria no mundo capaz de dar conta da fila de trocas: cabeças ocas não faltam, de Brasília a Lisboa.
Melhor trocarmos pedras por versos, porque só a poesia impede que o sangue esfrie e coalhe.
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