Os olhos da cara

Outro dia, ouvi alguém se queixando de que seus óculos “custaram os olhos da cara”. Ri, claro — não da dor alheia, longe de mim rir do sofrimento ocular de ninguém —, ao lembrar da lenda do conquistador espanhol Diego de Almagro, que teria perdido um olho tentando invadir uma fortaleza inca nas Américas.
Dizem que, ao reencontrar o imperador Carlos I, desabafou com orgulho — ou, quem sabe, buscando uma recompensa em ouro e prata: “Defender os interesses da Coroa espanhola me custou um olho da cara.”
E você aí achando que conta de tratamento dentário é salgada.
Já a expressão “Casa da Mãe Joana”, veja só, virou sinônimo de desordem sem freio. Mas tem pedigree: Joana I de Nápoles, acusada de conspirar contra o marido e expulsa pelo cunhado, foi parar em Avignon. Lá, resolveu regularizar os bordeis e, sem querer, emprestou seu nome à zorra toda. Lá era Paço. Aqui virou casa. E o Brasil, com seu talento para tropicalizar tudo, fez do nome próprio uma metáfora coletiva para lugares onde manda quem pode, entra quem quer e ninguém responde por nada.
Se expressões populares tivessem cabeça, tronco e membros, dava pra dizer que estamos perdendo velhos amigos sem sequer ir ao enterro.
“A cobra vai fumar”, por exemplo, que já foi ameaça de guerra, hoje dá cadeia por maus-tratos a animais silvestres. “Ficar a ver navios”? Com rastreadores, GPS e câmeras nos portos, ninguém mais espera à toa na beira do cais. E “fazer das tripas coração”? Numa era em que se pede todo tipo de comida por aplicativo, uma tripinha ainda me remete ao petisco favorito da minha saudosa sogra.
Expressões e palavras que já foram moeda corrente no linguajar do povão agora soam como peças de museu ou figurino de novela de época. Algumas ainda se agarram às beiradas da memória, outras já foram pro brejo com chifres e cascos.
“Balela” virou fake news nos telejornais. “Quiproquó” — do latim quid pro quo — anda escondida em tirinhas da Mafalda. “Sacripanta”, que já foi insulto respeitável pra trambiqueiro com pedigree, hoje parece nome de vilão da Disney. E o que dizer de “lambisgoia”, “sirigaita” e “traulitada”? Palavras com tempero e textura que, hoje, provocam mais espanto.
“Braguilha” e “esparrela”, coitadas, também caíram no esquecimento sem pedir socorro ao Google antes de sumirem. “Estapafúrdio”, que já nomeou todo tipo de disparate, agora cede espaço a “bizarro” ou “exótico”. E “tabefe”, que para minha querida mãe soava bem mais encorpado do que um simples tapa na cara, anda sumido nos cantos da língua.
Não é que os jovens sejam analfabetos desalmados. É que os contextos mudam. A gambiarra que sustentava “fazer um gato” está sendo criminalizada e digitalizada. Daqui a pouco, nem vai haver fio de cobre pra puxar energia de graça. E aí? A expressão morre de fome e sede.
A linguagem está virando um mosaico apressado — mistura de emoji, figurinha e gíria desidratada. “Cringe” aponta o dedo, “gatilho” dispara sem aviso, “flopar” afunda antes de zarpar, e “cancelar” transforma tropeços em apedrejamentos virtuais. E quem, como eu, já acumula mais ontens do que amanhãs, tenta decifrar o “sextou” numa semana em que todo dia parece quinta-feira ou sábado.
Tudo bem, é o curso natural da língua. Ela muda como o tempo e, feito o prato do dia, sempre volta com alguma releitura. Ainda assim, bate uma tristeza nesse adeus sem cerimônia. Uma saudade de quando “nem que a vaca tussa” significava teimosia inegociável. De quando “quem tem boca vai a Roma” era incentivo e não metáfora ao GPS.
Talvez no futuro existam museus de expressões. Salas interativas, com hologramas explicando o que era “pulga atrás da orelha”, “fazer vista grossa” ou “matar dois coelhos com uma cajadada só”. E um cantinho reservado a termos que, pela bela sonoridade, não mereciam jamais o esquecimento: “bagatela”, “chapuletada”, “faniquito” e “rebuliço”.
Até lá, paciência. Entre um “pense numa coisa arretada de boa!” e um “que esculhambação é essa!”, vamos tentando manter vivas expressões que, se já não cabem no dia a dia, ainda encontram abrigo na memória de seminovos como eu.
Porque toda expressão ou palavra que morre por falta de uso é mais um velório sem flores nem velas. Um enterro linguístico sem lágrimas nem preces.
E a língua vai perdendo não só os olhos da cara, mas a alma também, quando a gente esquece de pegar lápis, papel e, volta e meia, brincar com ela.
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