Blog do Hayton

e outros casos” (2021) e "Frestas" v(2022).

O contrabando da liberdade

10/07/2025 08h08
O contrabando da liberdade
Bodega do Sertão. Maceió/AL - Foto: Redes sociais

A gente se distrai e, quando vê, já viveu mais de sessenta anos e continua descobrindo obviedades. Como a de que a liberdade plena só se alcança quando se pode comer e beber à vontade, sem sermão de cardiologista, endocrinologista, nem culpa católica. 

Liberdade, essa velha senhora disputada a tapas por filósofos desde os tempos de Aristóteles, ganha outro sabor quando borbulha numa panela. Para o grego, ser livre era escolher segundo a própria vontade. Ora, que escolha é mais autêntica do que preferir um acarajé ou um caruru em vez de um insosso prato de folhas verdes regado a azeite e repressão?

Aristóteles ainda diria que a escolha deve ser orientada pelo conhecimento. Nada mais justo. Mas eu, que já acumulo bem mais certezas do que cabelos e dentes, asseguro: há coisas que só o paladar alcança. Como explicar a felicidade transcendental de uma feijoada no almoço de sábado, precedida de uma caipirosca de lima da Pérsia com rapadura triturada? Há coisas que nem Kant explicaria — muito menos especialistas de jaleco e balança.

A filosofia medieval, por sua vez, resolveu meter Deus na história e fez do livre-arbítrio um passaporte para a virtude. Comer virou um torturante teste de fé. E a gula, essa irmã siamesa da luxúria, passou a ser pecado capital. Ninguém mais podia se deliciar com um doce de leite talhado sem ouvir uma ladainha sobre os perigos dos prazeres da mesa. Como se fraturar um dente com um pedaço de quebra-queixo fosse uma forma de rebelião contra o Criador.

Dizem que Adão perdeu o paraíso por causa de uma maçã. Mas desconfio de que o verdadeiro estopim foi ouvir no Éden o primeiro “não posso, meu amor, tô de dieta”. Desde então, Eva nunca mais teve sossego — nem o marido teve algo realmente suculento pra comer.

Não me leve a mal. Reconheço que o prazer desordenado também pode nos escravizar. Mas que liberdade é essa que só se exerce com alface no prato e água sem gás no copo? Se mastigar cebola crua for o preço da salvação, prefiro desistir — desde que me sirvam abacatada, canjica e cuscuz no café da manhã do Purgatório.

Ao longo dos anos, já fui forçado a renunciar a um verdadeiro cardápio afetivo de sabores. Não falo de pratos exibidos como esculturas finas em louças minimalistas. Falo do que me leva de volta a lugares onde fui feliz e sabia disso: cocada, pamonha, sorda preta, suspiro de claras, umbuzada. Cada um deles representa um pedaço da minha meninice em estado pastoso na boca. Hoje, restam lembranças — e, com sorte, uma rabada com pirão servida longe dos olhos da vigilância sanitária do bom senso.

É curioso como ninguém nunca me pediu moderação no consumo de rúcula. Nunca vi campanha com os dizeres: “Chega de coentro e couve! Respeite seu corpo!” A militância anti-gula se contenta em demonizar a tapioca com manteiga, mas silencia diante do trauma de infância que é ser forçado a comer chuchu cozido sem sal, com sermão de sobremesa.

Os moralistas do prato fundo dirão que me rendo fácil aos prazeres da carne. Eu juro que convivi em paz com eles até bem pouco tempo. Mas, se a vida é uma travessia — como garantem os místicos —, que seja feita com um copo de caldo de cana com pastel de carne moída e azeitonas nas mãos. Não serei eu a atravessar o deserto da existência mastigando palitos de cenoura ou rodelas de pepino.

E cá entre nós: se existe pecado em saborear um costelão na brasa com farofa de ovos e vinagrete, então a virtude perdeu o rumo. Porque não há vício em amar o que é bom — lambendo os beiços, com os olhos entreabertos de prazer.

Aos que vivem em penitência alimentar, desejo sorte. Aos que me pedem parcimônia, pergunto-lhes se já provaram buchada de carneiro ou sarapatel com molho de pimenta. E aos que tentarem me convencer a trocar duas colheres de pudim de leite por uma barrinha de cereal, aviso logo: não contem comigo para esse tipo de permuta ilícita.

Porque a verdadeira liberdade talvez seja isso: poder escolher o próprio pecado — de preferência, com um chope, uma taça de vinho à mão.

Ou porque, no fundo, ninguém se liberta de verdade contando calorias. Liberdade de verdade é poder morder a vida com todos os dentes (com os que restaram, pelo menos), sem pedir desculpas pelo pleno desfrute do gozo.

Se o dia do Juízo Final vier em forma de balança, que me pesem com justiça, mas deixem meus bolsos em paz — podem esconder apenas umas pedras de rapadura, contrabando da liberdade.

E quando de fato chegar a hora da prestação de contas, que seja de alma leve e barriga cheia, ouvindo a sentença enquanto bebo meu cafezinho. Com pão de queijo do lado, pelo amor de Deus!