Blog do Hayton

e outros casos” (2021) e "Frestas" v(2022).

Vá em paz, Carnaúba

28/05/2025 08h08
Vá em paz, Carnaúba
Carnaúba e Hayton - Foto: Álbum de Família

Não sei falar da morte — ainda que ela nos espreite com a paciência de quem sabe que, mais cedo ou mais tarde, todos cruzaremos seu caminho. Dela pouco falo, e, quando vem de surpresa, me faltam palavras para enfrentá-la. Talvez por isso os poetas caminhem sempre um passo à frente de nós: porque vão iluminando a estrada com suas lanternas acesas, deixando pegadas para quem tiver olhos de sentir.
Foi assim que seguiu meu querido amigo Carnaúba, grande poeta, que nos deixou nesta terça-feira, 27 de maio de 2025.

Gosto de pensar que, ao chegar ao céu, foi recebido com festa por Selma — sua amada, cúmplice e musa de toda uma vida. Não haveria recepção mais justa nem braços mais certos para lhe dizer, com ternura, que a eternidade é sua casa agora.

Ainda bem, meu amigo, que há cinco anos, em plena pandemia, pude lhe dizer o quanto você era importante para todos nós.
 


quarta-feira, 1 de abril de 2020

Nobel da PazPor Hayton Rocha


Carnaúba é uma palmeira comum do Semiárido nordestino, conhecida como a árvore da vida longa. Da folhagem se extrai uma cera natural com que se produzem batons, sabonetes, vernizes etc. Seu nome deriva do tupi e significa “planta que arranha”, por conta dos espinhos em seu caule.

Mas a árvore longeva de que falo aqui, no auge de seus 82 verões, veio de outra galáxia. Não arranha nem possui espinhos. É leve, do bem e da paz, espirituosa, dotada de rara inteligência.

Nos anos 1970, quando pediam a Humberto Carnaúba horas extras após a rotina diária de seis horas de trabalho, ele se negava com um argumento simples e objetivo: ganharia bem mais, sob todos os aspectos, na mesa de sinuca, apostando com alguns amigos.

E, quando entrava em férias, em questão de minutos era visto com sua inesquecível Selma na estação ferroviária, onde embarcavam no primeiro trem que ali parasse, com destino incerto. Na bagagem, apenas três ou quatro mudas de roupa, escovas de dentes e sandálias. Voltaria em um mês, horas antes do início de um novo ciclo de trabalho.

Conheço-o há quatro décadas, desde que ancorou em Maceió. Ao lado de nossas mulheres (a minha e a dele, claro!), foram várias noitadas ouvindo e dançando forró pé-de-serra — o hino era “Feira de Mangaio”, de Glorinha Gadelha e Sivuca, na histórica interpretação de Clara Nunes. Na mesa, muita cerveja gelada e carne-de-sol com feijão-de-corda e creme de leite, ainda sem o risco dos bafômetros estraga-prazeres nas madrugadas da Ponta Verde.

Amante de motes e glosas (tipo de poema comum no Nordeste, que responde a um desafio lançado sobre um tema qualquer), Carnaúba sempre foi emérito contador de "causos". E, se isso não fosse suficiente, era onicófago convicto (roedor de unhas)! Admiro esses seres porque nunca vi nenhum deles fazer mal a alguém — pelo menos enquanto ocupados no hábito.

Sou testemunha de que Carnaúba, sem querer, conseguiu a proeza de ser protagonista da paz entre dois sujeitos que travavam uma guerra particular a 600 km da capital alagoana, mais precisamente em Salvador.

Ele ainda trabalhava no Agreste de Pernambuco quando teve que intervir numa iminente troca de sopapos entre dois fazendeiros ignorantes e truculentos, no dia do aniversário de um deles.

O coronel Carvalho resolvera comemorar idade nova oferecendo uma memorável buchada de bode. E, para demonstrar poder e força, convidou meio mundo de gente — inclusive um vizinho com quem vivia às turras por causa de disputa de terras.

No dia do rega-bofe, embora sofresse dores horríveis por conta de uma crise de gota, coronel Carvalho recebia os convidados na porta de casa com os pés descalços, para evitar o desconforto das botas.

Gota, para quem não lembra, é uma forma de artrite caracterizada por dor intensa, vermelhidão e sensibilidade nas articulações, causada pela cristalização de ácido úrico.

Ao meio-dia, chegava o vizinho com sua esposa a alguns passos atrás — prevalecia na região o jeitão machista de andar à frente da mulher, a pretexto de protegê-la. Na pressa de acompanhar os passos largos do marido, a coitada acabou pisando nos pés do anfitrião.

— Você vem cega, miserável?! — urrou o coronel, cerrando os dentes de dor.

O vizinho, ao ver a confusão instalada, fechou a cara e falou grosso:— O que tá acontecendo, mulher!?— Eu... eu pisei no pé do coronel Carvalho sem ver... — justificou-se, constrangida.— Oxente, mulher, Carvalho sem “v” é “baralho” — gracejou o vizinho, usando termo chulo que aqui escrevo com "b" para não ferir olhos mais sensíveis.

Fechou o tempo em relâmpagos e trovões! Não fosse a pronta intervenção do “embaixador” Carnaúba, o final teria sido outro, com cenas de pugilato explícito. Poderia até descambar para punhaladas e tiros — afinal, ninguém ia a um festão daqueles sem estar devidamente precavido. Mas salvaram-se todos. E os vizinhos puderam voltar para casa, diplomaticamente escoltados por meu velho amigo.

Anos depois, Costa — que havia migrado de Alagoas para a Bahia e tinha conhecimento do ocorrido por intermédio de Carnaúba — enchia a paciência de um colega, coincidentemente chamado Carvalho, com aquele tipo de pergunta que tira do sério qualquer cristão:— O seu Carvalho é com “v” ou sem “v”?

Ao ser apresentado a Carvalho, encontrei-o com o semblante tenso, chateado. Curioso, não resisti e quis saber:— Diga aí, por que você tá desse jeito?— Pra ser sincero, não aguento mais ouvir Costa me fazer aquela pergunta besta. Vou acabar fazendo merda!— Que pergunta?Contou-me o que se passava e pude então compartilhar com ele a origem de tudo.

Nisso, me veio à cabeça outra narrativa de Carnaúba — agora envolvendo o próprio Costa, que, no começo dos anos 1980, resolveu candidatar-se à presidência de um clube social em Maceió e andava em campanha, pedindo votos a todos os associados que encontrava.

Ao ver o esforço eleitoral do colega, Carnaúba, que nunca se incomodou com sua reluzente calvície, embora constantemente provocado por conta disso, indagou com a cara mais lisa do mundo:— Por que você não cria um slogan para a campanha?— Boa ideia! Tem sugestão, careca?— Não. Vamos pensar?— Você é que é bom nisso! Bote essa careca pra funcionar.— Muito bem, primeiro anote aí: “Se cabelo fosse importante, não nascia no... sovaco.” (O termo utilizado não foi bem esse, mas escrevo “sovaco” preocupado, de novo, em não ferir olhos mais sensíveis).— Peraí, Carnaúba, tô brincando!— Sei disso. Eu também. Já tenho até o slogan da campanha: “Bosta por bosta, vote no Costa!”

Carvalho caiu na gargalhada. Tinha agora o antídoto para o veneno que vinha lhe matando aos poucos. E, na primeira oportunidade, diante de vários amigos em comum, contou o caso tintim por tintim — para riso geral da plateia.

“A guerra só pode ser abolida com a guerra. Para que não existam mais fuzis, é preciso empunhar o fuzil”, dizia o líder chinês Mao Tse-Tung (1893–1976). A paz, enfim, foi restabelecida por obra e graça — ainda que sem querer — de meu amigo Carnaúba.

Se depender de mim, os velhinhos de Oslo, na Noruega, deverão ser notificados desses fatos para que lhe outorguem o próximo Prêmio Nobel da Paz, na presença do rei Haroldo V. É mais que justo!

Como a cerveja naquelas bandas é de primeira qualidade, tenho certeza de que Carnaúba irá gostar de conhecer a região escandinava — a terra dos vikings. Claro, assim que a paz voltar a reinar nesse mundão assustado de meu Deus.