O dedo do Poetinha
Dizem que Vinicius de Moraes conheceu Chico Buarque quando o menino ainda usava calças curtas e o bigode era só uma promessa no espelho. Chico devia ter uns doze anos, mas já trazia nos olhos e nas mãos a semente dos acordes — daqueles que brotam com o orvalho da sensibilidade.
Vinicius era o que sempre foi: um diplomata de ofício, mas boêmio por vocação, fluente em sonetos mais do que em telegramas. Frequentava saraus na casa de Sérgio Buarque de Holanda, pai de Chico, onde canções e livros se misturavam na mesa como poesia e prosa do mesmo caderno. Sérgio escrevia a história do Brasil em prosa. Chico, ainda sem saber, preparava-se para cantá-la em verso.
Numa tarde qualquer, entre uma dose de uísque e outra de lirismo, Vinicius prestou atenção no rapaz. Não viu nele apenas talento — viu alma, das que sangram em melodia. E lançou a rede com jeito: “Garoto, que tal me ajudar a terminar uma canção de Garoto?” Garoto, no caso, era Aníbal Augusto Sardinha, grande violonista que partiu cedo, sem que o Brasil lhe erguesse o busto merecido.
A música era “Gente Humilde”. Faltava a segunda parte. Chico hesitou — sentia-se, talvez, como aprendiz diante de cristal trincado — mas decidiu arriscar. E escreveu um dos retratos mais ternos da alma brasileira, falando de casas modestas, flores murchas, cadeiras na calçada, uma alegria que não tinha onde encostar — dessas típicas de domingos ou feriados ensolarados.
A canção ficou pronta. E o Brasil, maior.
Quando Vinicius nos deixou, em 1980, aos 67 anos, Chico já empilhava uma obra que parecia ter décadas. O tempo, diante dele, andava de mansinho, como acontece até hoje. Depois da morte do Poetinha, vieram joias como "Anos Dourados", "As Vitrines" e "Futuros Amantes". Canções que ainda surpreendem, como o céu depois de uma trovoada.
Chaplin dizia que a arte não precisa ser fiel à realidade — basta à imaginação que dela escapa. Por isso me pego aqui pensando: e se Vinicius ainda circulasse por aí, com um copo numa mão e um saco de poemas na outra? E se, numa madrugada bêbada de luar, resolvesse meter o dedo na obra dos amigos?
Imaginando essa presença fantasmagórica do Poetinha, mexendo nas músicas dos amigos como quem rabisca versos no guardanapo do boteco, me pergunto: e se ele tivesse deixado suas digitais em "Anos Dourados"?
A versão de Chico canta:
"Parece que dizes: te amo, Maria!Na fotografia estamos felizes.
Te ligo afobado e
Deixo confissões no gravador..."
Mas se o Poetinha resolvesse dar um palpite, talvez soasse assim:
“Te amo, Maria! — disse à tua ausênciana madrugada em que bebi teu retrato.O sorriso na moldura é só aparência,meus olhos desmentem o que foi teatro.
Te ligo entre goles, tropeço na fala,confesso no gravador como num altar.E se tens outro amor, que ao menos se cale —porque a febre é minha, de tanto te amar.
Te espero, e me firo. Me entrego, e deliro.Meu corpo é saudade: dorme e não sara.A dor que me abraça já nem sente o tombo:é bolero, é choro, é valsa rara”.
Onde Chico acaricia a ferida, Vinicius esfrega sal. Um compõe com a lucidez do poeta urbano; o outro, com o desatino do amante sem esperança. Chico canta a mulher que se foi; Vinicius, a que nunca deixou de ser. Um sonha com o que perdeu; o outro sangra por não aceitar a perda.
Talvez seja nessa praia que mora a mágica da parceria. Enquanto Chico tece a rede com linha fina, Vinicius se atira ao mar revolto. Enquanto um penteia o vento da memória, o outro engole a tempestade da ausência. Um escreve com a delicadeza das entrelinhas; o outro, com a urgência do bilhete amassado no bolso que nunca chegou a seu destino.
Assim surgiu "Gente Humilde". Poderia ter nascido outras tantas. E quem garante que, mesmo ausente, Vinicius não siga cochichando no ouvido de Chico? Poeta não morre — muda de andar.
Vai ver existe mesmo uma esquina onde o céu beija a calçada. E ali, entre doses de uísque e o dedilhar do violão, os dois se reencontrem. Um pede gelo. O outro afina o tom — não o Jobim, que, do nada, aparece e se mete na conversa: "Tô indo pro piano!".
E juntos, tecem mais um pedaço da alma brasileira. Daqueles que não cabem numa partitura. Só na saudade, essa misteriosa estrada cheia de curvas.
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