Ladrão de sanfona

Ano passado, um ladrão espalhou luto musical debaixo de muitos telhados mineiros. Um especialista — desses que não roubam qualquer coisa — mirando no fole sagrado dos mestres do interiorzão. Chamava-se Célio de Menezes, 59 anos, mas na bandidagem atendia por Zé do Queijo. Nome inofensivo, não fosse a trilha de desencanto que deixou em mais de trinta cidades. Sessenta sanfonas furtadas até a polícia desafinar de vez a melodia do crime.
O golpe era simples como dançar arrasta-pé: chegava se dizendo músico errante, fã de Dominguinhos, à procura de quem precisasse de um sanfoneiro pra animar festas. Falava grosso, citava nomes, tocava a senha do coração de quem vive da música. Ganhava confiança, pedia a sanfona “só pra dar uma ensaiada” ... e sumia no mundo como refrão esquecido. Quando a lábia desafinava, subia o tom com métodos menos musicais: ameaças. Sete anos nessa turnê criminosa.
Há algo cruel, quase desumano, no roubo de um instrumento. Não é só couro, madeira e metal que se perdem, mas ilusões, lembranças, sons que jamais serão ouvidos de novo. Quantas sanfonas não carregavam, além de teclas e baixos, o fole suado de uma vida inteira devotada à música? Cada roubo foi sequestro de um punhado de sonhos — e sonho feito refém, a gente sabe, é resgate difícil de negociar.
Foi a filha de um sanfoneiro quem desmascarou o ladrão. Reconheceu o instrumento do pai num anúncio nas redes sociais. Um arranhão aqui, uma tecla amarelada ali, marcas que nem o tempo apaga. A denúncia levou à captura do criminoso, e o destino dos instrumentos veio à tona: Rio de Janeiro, onde um receptador desmontava as relíquias e vendia as entranhas. Cada sanfona rendia sete, oito mil reais — sem contar o prejuízo sentimental, que dinheiro nenhum cobre.
Dizem que todo roubo revela tanto sobre quem o comete quanto sobre quem o sofre. E, pensando bem, também fui responsável por um — embora mais simbólico.
No sertão paraibano dos anos 1960, tentei ser digno de uma sanfona. Comprada em loja, com nota fiscal e tudo. Mas nunca fui íntimo delas, nem de qualquer outro instrumento. Se dependesse de mim, Zé do Queijo teria que repensar a profissão — talvez tentasse a sorte como açougueiro, camelô, funcionário público ou, quem sabe, se arriscasse em crimes de menor musicalidade.
Minha desarmonia com a música não foi por falta de incentivo. Meu pai, bancário por ofício e boêmio doméstico por vocação, tinha seu ritual nas manhãs de sábado: cervejinha gelada numa mão, enceradeira na outra, deslizava sobre mosaicos ao som de Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga e outros mestres. Depois, cuidava das margaridas e das rosas no jardim com o mesmo carinho devotado à mulher da vida dele.
Talvez, ao me ver fascinado por aquelas cenas, tenha enxergado no filho um prodígio musical na prole. Apostou alto: uma sanfona de 80 baixos e uma professora para me iniciar nos mistérios do Método de Acordeão Mário Mascarenhas.
Foram quatro meses de tortura. Eu, travando batalhas inglórias contra bemóis e sustenidos, enquanto o peso da sanfona esmagava minhas costelas e pernas magras, e a lentidão dos ponteiros do relógio da casa da professora fazia inveja à eternidade. Lá fora, o rock’n’roll já cochichava nos meus ouvidos — Beatles, Jovem Guarda — e eu queria mesmo era uma guitarra elétrica. Algo inaceitável para um pai amante da música genuinamente brasileira.
Optou-se por não insistir com as aulas — e, não vou negar, fiquei bastante contente. Preferia criar passarinhos, jogar bola, roubar goiaba, tomar banhos de açude, chuva ou rio, zoar os irmãos.
Só algum tempo depois entendi: tem pais que projetam nos filhos os sonhos que nunca realizaram. O meu, que nunca jogou futebol, nunca montou a cavalo, nunca nadou, nunca pedalou, nunca tocou um instrumento, viu no filho mais velho a chance de quebrar a sina. Quase deu certo.
Ao roubar sanfonas, Zé do Queijo silenciou músicos e sepultou esperanças. Eu, sem querer, fui cúmplice de outra espécie de roubo: deixei que uma sanfona — comprada a delírios e prestações — levasse embora o sonho de meu pai de me ver tocando um baião, um bolero, um forró.
Quantos de nós, sem querer, já não silenciamos o sonho de alguém? Do pai, da mãe, dos avós... Gente que só queria tocar bonito a vida pelos nossos dedos — e teve que se contentar com o silêncio.
Às vezes, a gente nem percebe quando vira ladrão dos sonhos alheios. E esse tipo de roubo nem cadeia dá. Só arrependimento, desgosto e saudade.
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