Sete vidas e nenhum coração

Nos tempos do Império, “doutor” era título nobre, concedido com a pompa de quem recebia uma comenda da Coroa, com direito a anel de esmeralda. Hoje, basta cruzar a linha de chegada do vestibular de Medicina para ver brotar “doutores” como mato em calçada rachada. O jaleco branco virou capa de super-herói urbano — só que, em vez de salvar vidas, muitos agora se contentam em postar vídeos e duelar por likes no TikTok.
Recentemente, em São Paulo, duas estudantes de Medicina, princesas da superficialidade digital, resolveram empunhar seus celulares como bisturis morais e praticar dissecação pública no coração de uma história triste. Postaram um vídeo debochado, digno de uma tragicomédia urbana, comentando com desdém o caso de uma jovem que, em vez de sete vidas, como os gatos, teve três corações. E mesmo assim, não escapou do apedrejamento pós-morte.
A paciente não era personagem de ficção. Era uma guerreira de carne, cicatrizes e ossos. Diagnosticada ainda criança com uma anomalia rara no coração, percorreu uma via-crúcis de hospitais, salas cirúrgicas e UTIs como quem atravessa desertos à procura de um gole de esperança. Sobreviveu a três transplantes, enfrentou o esgotamento de um corpo que não se rendia fácil — mas tombou, ironicamente, pela mão invisível e fria da crueldade das redes sociais, essa que se disfarça de humor e se esconde atrás de arrobas e filtros.
As princesas — subcelebridades narcisistas que não eram da USP, mas se exibiam como novas protagonistas da elite de branco — resolveram transformar a luta da paciente em espetáculo de stand-up. Talvez achassem que estavam arrasando numa TED Talk de corredor hospitalar. Escorregaram feio na casca da insensatez. A plateia não riu. O Brasil, mesmo anestesiado por absurdos cotidianos, também não. E a família da paciente? Foi obrigada a assistir, pela enésima vez, à dor da filha viralizando como figurinha rara no álbum das humilhações da internet.
Sim, existe uma infecção generalizada se alastrando no reino das redes sociais. E não é só o algoritmo, esse bicho que sabe mais de nós do que nossa mãe. É o que mora por trás do jaleco, do estetoscópio, da indiferença. Um vazio de empatia, de ética, de senso. As “doutorinhas” — como disse um amigo meu, com precisão cirúrgica — talvez não necessitem de um transplante de coração. Talvez precisem de um implante de humanidade. O problema é que esse órgão anda mais escasso que plantonistas em véspera de feriadão.
Se existisse um Dr. Frankenstein capaz de costurar um novo ser humano com retalhos de decência, talvez ainda houvesse esperança. Mas a fila de espera é longa, e o estoque, escasso. O Brasil também agoniza com déficit crônico de doadores de células de compaixão.
É claro que, como manda o script, vieram as notas de repúdio, os comunicados frios, os protocolos de apuração, o inquérito policial. As faculdades das princesas “lamentaram profundamente”, como se fossem mães arrependidas por uma travessura de suas meninas. O Incor apressou-se em dizer que elas eram apenas figurantes num curso de extensão — e que, felizmente, já haviam deixado o palco.
Mas quem devolve à família da injuriada o direito de lembrar dela em paz, sem a mácula do escárnio viralizado? Quem restitui à jovem morta a dignidade que lhe foi negada mesmo após o martírio?
O caso exala por todos os poros vaidade digital de quinta categoria. Por um instante, considerei me poupar do contato com tanta toxicidade. Mas o vídeo me chegou pelas mãos de um amigo que, com a indignação que falta aos conselhos de ética, lançou uma pergunta perfurante: “Quantos transplantes de coração seriam necessários para essas moças?”
Boa pergunta.
Talvez bastasse aprender que coração não é feito só de ventrículos, válvulas e vasos. É feito de decência, intenção e gesto. De silêncio, quando falta o que dizer. De humildade, pra não se achar acima da dor alheia. E, sobretudo, de vergonha na alma — essa que não se ensina em aula magna nem se baixa por link patrocinado.
Se, por alguma ironia do destino, cruzar por aí com uma das princesas — numa esquina da vida onde o inesperado distribui seus tapas —, prometo abrir meu coração. Direi, com a elegância que a idade ensina, que embora quase nunca esqueça um rosto, no caso dela terei o prazer de abrir uma exceção.
Porque o coração, esse órgão besta e valente, apanha calado todos os dias. Mas quando a compaixão e a ética param de bater por ele... ele não vira pedra. Vira farsa. E aí, nem transplante dá jeito.
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