Perfume raro
Quem de nós, navegantes com mais de seis décadas de águas revoltas, não se lembra da melancólica canção-poema “Rosa de Hiroshima”? Com esta música, o lendário grupo musical “Secos e Molhados” tocou cicatrizes, visíveis e ocultas, de crianças que, inocentes aos dramas dos adultos, sobreviveram ao bombardeio atômico no Japão.
Essas pequenas criaturas, transformadas pelos versos de Vinicius de Moraes em moleques calados e telepáticos, ou meninas cegas e desorientadas, trazem consigo o legado da radioatividade que se estenderá por gerações. E o poeta escolheu a flor para simbolizar o momento da explosão: uma imagem que evoca o trágico desabrochar de uma rosa. “Rosa com cirrose... Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada”, ele pontuou.
Sim, tudo isso é muito injusto. O câncer infantil, líder cruel nas estatísticas de mortalidade entre nossas crianças, como atesta o Instituto Nacional do Câncer (Inca), prevê o doloroso surgimento de cerca de 8 mil casos anuais até 2025, atingindo jovens de 0 a 19 anos de idade. Quem ousou dizer que a vida seria justa?
Se fosse justa, veríamos desabrochar mais “rozas” em nossos canteiros. Não se espantem com o “z” que emprego aqui. Não falo de uma rosa qualquer, muito menos da descolorida e sem perfume Rosa de Hiroshima, mas da Roza da Apala, uma mulher que, inconformada com esse fatalismo estatístico, resolveu provar que atos falam mais alto que palavras.
Roza, ou Rozenita Fernandes, uma maceioense que nasceu poucos meses antes daquele fatídico bombardeio, é antes de tudo esposa, mãe e avó extremada. Em 1994, ela deixa seu emprego como psicóloga no antigo Hospital do Açúcar e, como voluntária, se junta a um grupo de almas devotadas para enfrentar o câncer infantojuvenil, abraçando a causa da recém-criada Apala (Associação dos Pais e Amigos dos Leucêmicos de Alagoas) – uma organização sem fins lucrativos mantida por doações e voluntariado que, na época, funcionava numa casa alugada.
Logo, a Apala daria mais do que uma simples assistência a crianças com leucemia. Torna-se um lar temporário na capital alagoana (onde os tratamentos são possíveis) a crianças e adolescentes portadores de todos os tipos de câncer. Oferece refeições, assistência social e psicológica, cuidados odontológicos, suporte para compra de medicamentos e transporte para hospitais.
E Roza percebe que poderia contribuir ainda mais na estruturação da casa, buscando meios para mantê-la ativa e próspera. A partir de um projeto arquitetônico desenvolvido por sua nora, Nadja Fernandes, nasce a sede própria em terreno doado pela Prefeitura de Maceió, com recursos arrecadados junto a centenas de doadores (empresas e pessoas) sensíveis à causa.
A Apala se torna uma das melhores casas de apoio no país, atraindo a atenção de entidades como o Instituto Ronald McDonald’s e a Construtora V2, o que acelera vários projetos, inclusive o mais ambicioso deles: a criação do Ambulatório de Oncologia Pediátrica do Hospital Veredas (que sucedeu o Hospital do Açúcar), pertinho da instituição.
Foi assim que, sob o olhar determinado de Roza e sua equipe, a Apala enraizou-se, ganhou corpo e floresceu, tornando-se símbolo de compaixão e perseverança, voltado ao bem-estar de mais de 400 pessoas. Parecia ecoar pelos corredores “Os cegos do castelo”, de Nando Reis: “Eu vou cuidar, eu cuidarei muito bem dele, eu vou cuidar... Ah! Eu cuidarei do seu jantar, do céu e do mar, e de você e de mim...”
Roza viu de tudo, até crianças sendo abandonadas à própria sorte por suas famílias. Lidar com uma criaturinha dessas gravemente enferma é defrontar-se, no mínimo, com duas perdas profundas: a da criança e a da própria esperança. É a ruptura da idealização da infância e do futuro que nunca chegará. Encontrar-se com o fim da vida de uma delas é, em parte, encarar a própria morte.
Um dia, ela sentiu o peso do estresse emocional e físico, sobretudo das relações interpessoais complicadas no submundo corporativo, e resolveu voltar pra casa. Tinha consciência de que doara o seu melhor, sabia do tamanho da árvore que ajudara a plantar durante três décadas, de sua infatigável jardinagem e dos frutos colhidos.
Roza havia descoberto por experiência própria que as ações são mais eloquentes do que as palavras. Sim, precisou de amor para pulsar, de paz para sorrir e de chuva para florir, lições colhidas de uma antiga canção que ecoa ao fundo de sua vida e lhe ajuda a tocá-la em frente.
E agora o seu universo orbita mais suave ao redor de pessoas éticas, divertidas e inteligentes, como seu marido Roberto; seus filhos Hermann, Roberta e Renata; e suas netas Júlia, Luísa e Lívia, pilares de sua felicidade e fontes de alegria e renovação. Fez (e faz) por merecer.
Cartola estava certo quando compôs “As rosas não falam”. Tanto é que não me espanto com outra com tanta beleza, a Roza da Apala, que mesmo calada, apenas sorrindo, exala um perfume raro: a essência do bem.
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