Duro na queda
Outro dia procurei um otorrino para remover o excesso de cera nos ouvidos, além de avaliar a progressão de uma leve deficiência auditiva que, a rigor, considero até conveniente, pois me poupa de ouvir aquilo que não me interessa.
Duvidei quando uma educada atendente, na recepção do ambulatório médico, me pediu a carteirinha do plano de saúde e o braço para colocar uma pulseira rosa (nada contra a cor!), com a curiosa ressalva de que faria parte do protocolo interno: indica que o paciente tem risco de queda.
Quase sofro uma queda, sim, mas de tanto rir. Achei que estava diante de uma daquelas brincalhonas que adoram as bobagens, postagens e tatuagens de Gabigol e outros dândis. Pensei: talvez ela viu meu prontuário e imagina que as linhas tortuosas dos últimos eletrocardiogramas estão associadas ao sobe-e-desce do Vasco.
Sobre futebol, aliás, há pouco mais de uma década, escutei por acaso (com estas fábricas de cerúmen que seguram meus óculos) uma conversa na fila de embarque do Aeroporto JK, em Brasília/DF, envolvendo dois atletas vascaínos por quem nutria grande admiração desde a vitoriosa campanha da Copa do Brasil 2011: o atacante Éder Luís e o lateral direito Fagner.
Em três minutos, a enxurrada de tolices que entrou pelos meus ouvidos poderia ter acabado com a incerteza que persiste em mim sobre se faz sentido continuar sofrendo ou vibrando com o chamado esporte bretão. A coisa é mais grave do que imagino.
Mas isso é assunto para outro momento. Eu não deveria cobrar deles a capacidade de desenvolver pensamentos e ideias com a linguagem falada, ainda que, se assim agissem, os dois teriam uma boa chance de contar suas experiências com clareza e algum grau de complexidade. Devo admitir, no entanto, que o mais importante era que continuassem formando uma boa dupla pelo lado direito do Vasco.
Não poderia também esperar que os jovens atletas refletissem sobre a própria existência, trocando perguntas do tipo: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Seria bom refletirem sobre os objetivos pelos quais faziam o que faziam. Seria ótimo terem consciência de que jogar (ou torcer) por um clube com a grandeza do Vasco é olhar para os outros e dizer a si mesmo: “sim, eu sou melhor que ele!”.
Mas volto à recepção do ambulatório médico. Não vejo motivo, pelo menos por enquanto, para que uma moça tão simpática olhe para mim e tema uma queda relacionada, por exemplo, a piso escorregadio, atrapalhar-se com sapatos e gatos pelo chão, trombar noutras pessoas, subir e descer escadas ou simplesmente cair da cama sem uma explicação etílica ou sexual (nunca se sabe, não é?).
Não posso aceitar que alguém que me vê pela primeira vez, desconhecendo as minhas queixas da hora e sem prévia consulta a um repositório de informações a meu respeito, possa deduzir que estou velho, escorado em meia dúzia de muletas químicas que me ajudam desde o controle da pressão arterial até o tratamento da próstata aumentada e seus reflexos sobre uma bexiga preguiçosa, com vontade própria.
Deus me poupe de ficar velho e rabugento como certas pessoas que conheço, mas, pensando bem, desconfio de que isso um dia será inevitável. Volta e meia já ouço uns e outros me chamarem de “senhor” e isso não ocorria com tanta frequência, nem mesmo vindo de filhos, noras, genro e netos.
Agora, se vou ao supermercado, até o fiscal de prevenção de perdas (eufemismo infame para designar o dedo-duro responsável pela escolha aleatória dos torturáveis acusados de furto famélico), querendo ser gentil, me encaminha ao caixa de atendimento exclusivo a idosos onde existe uma placa com um desenho estilizado de um velho corcunda com uma das mãos no quadril e a outra numa bengala (quem foi o “gênio” que criou aquilo?).
Logo eu, que já fui comparado por minha mãe a ninguém menos que Antonio Fagundes – reconheço, toda mãe é um tanto cega, muda e surda, mas, claro, fala apenas a verdade. Só que, hoje, obrigado a dormir com uma máscara nasal para encarar a apneia do sono e o ronco, além de um protetor bucal para evitar que o bruxismo destrua o que me resta de dentes, entendo quando minha mulher, no meio da madrugada, se assusta ao acordar do lado de Darth Vader, o vilão da saga Star Wars.
Sei não. Há possibilidade de que, em breve, minhas fotos estampem catálogos de fornecedores de medicamentos e utensílios voltados para a saúde em geral.
Fazer o quê? Da próxima vez que me pedirem o braço para colocar uma pulseira me identificando como paciente sob risco de queda, ficarei calado. Não posso sair por aí distribuindo a torto e a direito bengaladas verbais.
Se a queda for inevitável, vou relaxar e aproveitar, como ensinava uma vetusta sexóloga. Tem sido assim desde que deixei de engatinhar e aprendi a andar, cair e me levantar.
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