Língua solta
As saias de vinco batiam no meio das canelas das meninas e já foram de várias cores: azul, bege, marrom, vinho. Os internatos femininos dos idos de 1940 a 1970 custavam os olhos da cara. Em troca, ofereciam formação e conduta. As meninas até podiam sair da clausura, mas sob a tutela de religiosas que cuidavam desde a forma de se pentear até os centímetros da roupa.
Era comum uma moça trocar de internato se outro na região oferecesse um horário mais flexível, permitisse uma inocente troca de olhares no café ou chá de casca de laranja com um rapazote, na sala de estar. Apesar dos rigores, divertiam-se. Longe de casa, dividiam quarto com amigas de outras cidades, com quem compartilhavam cochichos de dormitório sobre namorados, virgindade e casamento.
Soube por intermédio de meu amigo Chiquinho Neto que, certa feita, madre Perpétua do Socorro, uma paulista de Barretos (capital do rodeio), radicada no Alto Sertão cearense, diretora do internato da cidade onde ele nasceu, decidiu levar suas meninas para assistirem ao circo que acabara de chegar. Para ela, o circo era um lugar mágico, que remetia a vivências e sensações incríveis, fazendo crianças, jovens e até os mais velhos viajarem na beleza das cores, na alegria dos palhaços e nas acrobacias e aventuras dos trapezistas.
A história circense no Brasil se inicia no século 19, período em que muitas famílias europeias chegavam e se reuniam em guetos onde, além de compartilharem vida coletiva, demonstravam suas habilidades circenses. Também com ciganos que, nômades, se apresentavam ao público de diversos lugares mostrando algumas de suas habilidades, como o ilusionismo e a doma de animais bravos.
Os espetáculos eram adaptados de acordo com o gosto do público. Se alguma atração não agradava aos espectadores de certa região, deixava de fazer parte da programação para aquele local. O palhaço europeu, por exemplo, na versão original era menos falante e fazia uso da mímica como base para suas apresentações.
Esse modelo não funcionou bem por aqui e precisou ser adaptado para o tipo de palhaço que todos nós estamos acostumados, principalmente aqueles que atuam em circos mambembes, sem a atração de animais: fala alto, volta e meia utiliza instrumentos musicais sem muita habilidade e tenta ser engraçado de forma chula.
Mas voltemos àquela tarde em que madre Perpétua em carne, véu e osso, resolve levar as suas meninas para assistirem ao circo que acabara de chegar. Todas acomodadas, algodão doce e pipocas fraternalmente distribuídas, eis que o espetáculo começa com o palhaço a toda corda. À medida que o público aplaude, sobe o tom das tiradas picantes, até descambar ladeira abaixo:
– E o palhaço, o que é?
– É ladrão de mulher!
– E a mulher, o que tem?
– Carrapato no sedém...
Nos rodeios, “sedém” é uma espécie de cinta, confeccionada em lã, crina de cavalo ou espuma revestida de tecido macio, que corre entre o traseiro e a virilha do touro para estimulá-lo a escoicear cada vez mais, a desafiar o equilíbrio do peão.
Talvez lembrando de sua infância em Barretos, no interior paulista, madre Perpétua trata de recolher suas pombinhas inocentes e, em comitiva, busca ajuda junto à principal autoridade da cidade, depois do prefeito, do juiz e do padre: o delegado Tonho Lapada, militar reconhecido como reserva moral nas redondezas, apesar da injustiça de seus tabefes reservados apenas aos ladrões de galinha.
Ao chegar à delegacia, a madre superiora foi ao ponto:
– Delegado, o palhaço tá com imoralidades lá no circo. Tive que sair de lá correndo com as moças por causa dos palavrões. Onde já se viu uma coisa dessas?
Tonho Lapada levanta-se num pulo só, beija as mãos da freira e exprime sua mais profunda revolta com o ocorrido:– O quê?! Aquele “filadaputa” tá faltando com o respeito ao povo daqui? Vou lá agorinha fechar aquela empanada de merda! E se ele insistir, meto o pau no rabo dele na frente de todo mundo! Será que ele tá pensando que essas divisas aqui – bate os dedos indicador e médio da mão direita sobre o braço esquerdo – foram pregadas com sebo?!
E veio uma onda de suspiros e desmaios, fingidos ou não.
A língua é viva. A maneira de falar se renova mais rápido do que o modo como se escreve, porque a oralidade precede à escrita e é bem mais utilizada. Render-se às mudanças na fala e na escrita é sentir de perto o idioma em movimento.
Chiquinho Neto me conta também que, pouco depois que o circo e o delegado partiram da cidade, madre Perpétua foi vista conversando com uma mocinha que chegava pela primeira vez ao internato, cheirosa e bem penteada, com a saia de vinco batendo no meio das canelas:
– Minha filha, tomara que você traga de berço um linguajar castiço, polido, porque isso aqui tá de lascar! Parece um circo!
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